quarta-feira, 29 de abril de 2015

ensaio #02


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COMPOSIÇÃO #01

A partitura criada no último ensaio ----
Mineirinho, de Clarisse Lispector ----
 Um ou treze tiros ----
O que você tem vontade de fazer no palco? De dizer? ----


>>> MEMÓRIA <<< >>> IMAGINAÇÃO <<< >>> ATUALIDADE <<<

Aqui, impulso e intuição são essenciais.

Para compor, é necessário negociar

Uma negociação do ator com seu desejo, com seu pensamento e com o programa a ser seguido. Negociar até encontrar o sumo e transformar esse tanto de referência em algo útil à sua [à nossa] vontade. Em “The View Points Book”, Anne Bogart diz que a Composição é um método para revelar para nós mesmos nossos pensamentos e sentimentos ocultos a respeito do material.

Pablo Picasso disse uma vez que “fazer arte é uma nova forma de escrever um diário”.


Pois então,
as escritas são múltiplas e como resultado:

Composições distintas. Cinco tentativas de dar conta do impossível.
Um quebra cabeça de corpos-memória-colonizados-desejantes.

como representar, no teatro, o mundo em que vivemos?

essa pergunta ecoa em mim e ressoa nas composições.

Vou puxar da memória e tentar dar conta das composições em algumas palavras. Tentando deixar de lado os conceitos teatrais e me colocando somente como espectador, como receptor. Trabalhando escuta, percepção e escrita.

Tudo o que segue é fragmento e/ou possibilidade poética.


André.
Há dias em que o passado me acorda e não posso desvivê-lo¹. Tenho 30 anos. Esfrego os olhos tentando desanuviar a manhã que embaça o dia¹. Já tenho 30 anos. Deixo a cama carregado pelos fados de ontem.¹ 30 anos. Daqui, o que vejo é um círculo de bolas de soprar esvaziando-se lentamente. Espécie de ampulheta. Divido o mundo vivido do mundo sonhado com a nitidez da loucura¹. Lá se foram 30 anos ou dez mil novecentos e cinquenta dias. O tempo passa, impiedoso. O homem é só metade. Eu sou só metade. As bolas esvaziam-se.  Lentamente. Gradualmente.  [Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia para a felicidade ². Pouco a pouco, num grito mudo e/ou ao som Dream a Little Dream of Me, o homem se desfazia]. O presente é a soma de nostalgias, agora irremediáveis. A memória suporta o passado por reinventá-lo incansavelmente. Meu real é mais absurdo que minha fantasia¹. Meu corpo e minha arma esvaziam-se. Um tiro certeiro. Final. 

1 – fragmentos --- Vermelho Amargo de Bartolomeu Campos de Queirós.
2 – fragmento --- O Filho de mil homens de Valter Hugo Mãe.


Rúbia.
Preto. É tudo preto. Escuro. Dois refletores são acesos na potência máxima. Dois corpos no espaço. Não vejo rostos. Ouço choques. Ouço gritos. Gritos mudos. [Ímã --- qualidade daquilo que atrai; peça de aço magnetizado que tem a propriedade de atrair o ferro e alguns outros metais]. Os corpos estão distantes, não há toque. O oprimido atrai o opressor. A opressão atrai o olhar do espectador. Assisto, atônito, a evolução dos corpos no espaço. Um frio que congela. Um corpo, em cena, expele suor. O outro, sons. A invasão da privacidade me atrai. Podem, os olhares, devorar os corpos. Isso me excita. Reconheci-me. Tive tempo. Busquei um verbo para descrever. Procurei no dicionário verbo a verbo e tinha-os usado todos, menos o verbo morrer. Preferi repetir o matar a ir ao encontro do ineditismo contido no verbo morrer. E quando todos já tinham uma ideia feita de mim, causei-lhes, sem querer, surpresa. Um tiro. Invisível. Me vi, portanto, morto. Morto de sonhos. Morto de esperanças. Mas, vivo. Não mais acredito em nada. Lembra do teatro? Que sentido tem?


Ricardo.
Começamos no fim, um tiro. Tiro de madeira na madeira. Tiro, a queima roupa, da realidade sobre os sonhos. [respiração] Olha aí a carne carregada por um corpo-humano. [respiração e suor] Olha aí o corpo-humano esfaqueando feito doido a carne morta, vermelha, sanguínea. O manejo da faca sobre a carne é certeiro, como se degolasse cada um de nós. Corpo-humano desesperado, medroso. [falta ar] Um carregador é ligado ao tecido muscular – vulgarmente chamado de coração, mas que é, na verdade, só um pedaço de alcatra. Choque. Confundo  meu-corpo e o corpo-alcatra-energizado. [falta batimento cardíaco]
A partir daqui, eu sou o outro. Eu sou a alcatra. Também eu sou o corpo-humano-desesperado que esfaqueia. [o coração para] Desfibrilador. Um aparelho que emite uma descarga elétrica para corrigir a fibrilação ventricular e fazer o coração bater novamente no ritmo adequado para bombear o sangue. [descarga elétrica 01] Tentativa de fazer acordar o já morto. [descarga elétrica 02] Um choque na realidade. [descarga elétrica 03] Sim, eu morri! Sou carne morta em exposição. Um corpo num caixão ou numa vala qualquer. Cru. Sangrado. Velado. Vedado. Amputado. Impotente. Mas quem aqui se importa? ........................  Metáfora? Alegoria? Representação? O que há de gente em nós? O que há de real em nós?

Grasi.
 Papel em branco. Onírico. “desconheço o ruído que interrompeu meu sono naquela noite. Amparado pela janela, debruçado no meio do escuro, contemplei a rua e sofri imprecisa saudade do mundo” ¹ <RUPTURA - ou tiro> Seco. Cai o plano. Tá lá mais um corpo estendido no chão! Uma criança. Um menino de cinco anos. A caneta explode sobre o papel. Papel manchado de vermelho. Um atravessamento. Real. Não ficção. O corpo sufocado - ou morto – do artista transborda em tentativas poéticas de representação do fato. “Então logo se fez, mais uma vez, a roda. A roda de gente na rua. Teve foto, teve curioso, teve TV e teve a Mãe. Teve o que merecia, disse os olhos do cidadão, que ao contrario de Antônio, se matava assim, de dentro pra fora. Agora, a formiga desvia do corpo miúdo e faz força pra passar. Muita gente, muito peso, muito mundo”. MUNDO MUDO. A trilha sonora, inaudível, se chama BIFE.

1 – fragmento --- Vermelho Amargo de Bartolomeu Campos de Queirós.

Luiza.
13 barulhos. 13 tiros. 11 minutos de composição. O tempo aqui é inimigo. Afinal, como dar conta de toda a angústia contida em 13 tiros? Não quero falar sobre. Não quero desorganizar. Mas falo. Preciso. Ensino minha partitura pra alguém. Pra me ver no outro, espelhada. Eu sou o outro. Eu quero ser o outro. [pausa] Desisto, resolvo falar outra coisa. Autorreflexão? [micro pausa] Ouçam o tiro que vai me matar. Meu corpo está aqui, no cantinho, mas eu não me responsabilizo. Os ouvidos, os olhos, as mãos, os órgãos, são de vocês! Vocês escolhem o que ouvir! Vocês escolhem o que ver! Vocês escolhem o que sentir e escolhem se levam o meu corpo daqui ou não! Não, isso não é um convite! Eu não me responsabilizo. [pausa longa] Vocês escolheram me carregar até a sala! Vocês! É por sua conta e risco! [tempo lento para o cortejo] Meu corpo é velado pelo Augusto Boal. Ele foi diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta brasileiro, uma das grandes figuras do teatro contemporâneo internacional. Não fui eu quem disse isso. Foi o wikipedia. Eu não me responsabilizo. “a gente não quer a uniformização das pessoas, a gente quer a unificação”. Ele – o Augusto - que disse isso no meu velório. Eu não me responsabilizo. Prefiro não opinar. Prefiro não compreender. Prefiro não me comprometer. Depois de treze tiros, estou morta. E mortos não devem opinar.



Cartografia da sala de ensaio >>>
                                         >>> Coletiva, movente, inacabada. É meio, é caminho, não fim.


Reverberar o real. Deixar de falar sobre politica e ser politica. Até quando nos manteremos em cinismo? A realidade não é natural. É preciso desnaturalizar as relações. Encontrar novas realidades possíveis. Novas possibilidades poéticas. Buscar uma realidade no palco quase mais real que a própria realidade.
Somos gente à procura de palavras e discursos; corpos em busca de voz e de transformação do espaço social.


01 DESEJO: CONTAR UMA HISTÓRIA.
01 PERGUNTA: COMO EXPLODIR ISSO TUDO EM PERSONAGENS, EM SITUAÇÕES?
OUTRA PERGUNTA: COMO NÃO TER UMA ABORDAGEM INGÊNUA EM RELAÇÃO A ISSO TUDO?


Os personagens dessa história ainda são desconhecidos. O que se sabe – ou, pelo menos, o que se deseja – é que podem refletir qualquer um de nós: indivíduos desejantes que tem como única posse material o seu corpo – bestial, colonizado, preenchido de memória, de preconceitos, de crueldade, de beleza e horror.


epígrafe ---

“utopia ou não? ninguém se entende. gosto mais de quem acredita no impossível e, por isso, não precisa de utopias. mas os descrentes mandam no mundo. raios partam”.

 valter hugo mãe em postagem no Facebook (22/04/2015) ---




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ensaio #02 -------------------------
sala do elevador - CBAE ou CEU
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andré locatelli, davi palmeira, dominique arantes,
grasiela müller, luiza rangel, ricardo cabral, rubia rodrigues.



--- davi. 



terça-feira, 28 de abril de 2015

Composição 1. respiração

numa espécie de saudação a Ala a respiração é difícil. um misto de cansaço e dor.
inspira. prende ao máximo. solta. solta tudo. não inspira. prende ao máximo. inspira. as mãos tremem.
em quatro apoios. respiração ofegante. tentativa de recuperar o folego. olhos úmidos. lagrima.
levanta-se. num plano médio. mãos nos joelhos. limpa o rosto. limpa o rosto. limpa o rosto. a sujeira não sai.
sem ajuda das mãos, usando o antebraço direito, tira, num movimento lento e continuo, o cabelo da face.
levanta-se. lentamente. olha. torna a cair.

Relatos Selvagens

Difícil escrever apenas 1 relato selvagem. Acho que por isso o filme também escolheu o plural ao singular. Sendo assim, vou seguir a linha e dar continuidade ao plural no meu relato(s).

11)      Em um discurso durante um debate para eleições presidenciais um dos candidatos a representante da nação diz o seguinte:
“Olha, minha filha, tenho 62 anos e, pelo o que eu vi na vida, dois iguais não fazem filho. E digo mais! Desculpe, mas aparelho excretor não reproduz. É feio dizer isso. Mas não podemos jamais, gente, eu que sou um pai de família, avô, deixar que tenhamos esses que ai estão achacando a gente no dia a dia querendo escorar essa minoria a maioria do povo brasileiro. Como é que pode um pai de família, um avô, ficar aqui escorado porque tem medo de perder votos? Prefiro não ter esses votos! Mas ser um pai, um avô, que tem vergonha na cara e que instrua seu filho, que instrua seu neto. E vou acabar com essa historinha. Eu vi agora o padre, o santo padre, o Papa, expurgar, fez muito bem, do Vaticano um pedófilo. Esta certo! Nos tratamos a vida toda com religiosidade para que nossos filhos possam encontrar realmente um bom caminho familiar. Então, eu lamento muito. Que façam bom proveito do querem fazer e continuar como estão, mas eu, presidente da republica, não vou estimular. Esta na lei que fica como esta. Mas estimular, jamais, a união homoafetiva.”


22)      Durante um culto, um pastor de uma Igreja no litoral de São Paulo proferiu a seguinte fala:  “Essas duas precisam sair daqui algemadas!” para duas estudantes que se beijaram. Sob aplausos do público que assistia ao culto, Joana Palhares (18 anos) e Yunka Mihura (20 anos) foram detidas, algemadas por agentes da Guarda Civil Municipal e levadas ao 1.º Distrito Policial de São Sebastião. Na delegacia, Joana passou por exame de corpo delito pois ela tinha hematomas nos braços e pernas. Segundo a estudante ela foi pega, levada ao palco do centro religioso e espancada por três seguranças. As duas estudantes, entraram com um processo contra o pastor que, sabendo da denuncia disse: “Elas alegaram homofobia, mas isso não existe nem na Constituição e nem no Código Penal”.


33)      Em um país desse mundo na época do agora o fuzilamento ainda é pena para diversos tipos de crimes. Segundo o protocolo de execução, é dado aos prisioneiros a opção de ficar de pé, ajoelhar-se ou sentar-se diante do pelotão de fuzilamento. Nas execuções realizadas no país, as mãos e os pés dos condenados são amarrados e 12 atiradores miram no coração de cada prisioneiro, mas apenas uma das armas têm munição de verdade. As autoridades dizem que isso é para que o carrasco não seja identificado.


44)      Chineses são escravizados em uma pastelaria na cidade maravilhosa do Rio de Janeiro. O dono do estabelecimento garantia emprego, salario e horas delimitadas de trabalho aos imigrantes que chegavam. Entretanto, assim que esses chegavam, ele confiscava seus passaportes e dizia que apenas após o pagamento dos gastos com passagens e hospedagem (um porão dentro da pastelaria) os tais trabalhadores receberiam seus salários. Além de submeter os chineses ao trabalho escravo, seções de tortura também eram feitas por conta de mau comportamento.


55)      Andando pela rua acompanhada de um grupo de amigos eis que um deles fala “Adoro quando vejo noticia de ladrão que é morto. Vocês viram a noticia do rapaz que foi atropelado por um ônibus após assaltar uma senhorinha? Muito bom!”


66)      “Só eu sinto nojo de comer em lugares que os atendentes são feios, suados e sujos?” post lido no Facebook dia 20 de Abril.


 77)   Polícia mata criança de 10 anos após confundi-la com bandido. Policial diz que o menino estava armado quando na verdade possuía um celular em suas mãos.


88)      Em mais uma confusão com o celular, policia mata refém de sequestro em São Paulo. Um rapaz foi sequestrado em seu carro e o sequestrador, no banco do carona, o coagia a dirigir numa fuga em que policiais o perseguiam. A policia conseguiu interceptar o carro, mas ao sair do veículo o dono do carro (um mulato forte) levou cinco tiros a queima roupa. A policia diz que só o matou pois ele saiu com um objeto na mão (o celular).



ao terminar essa escrita fico com uma pergunta: se eu pudesse desfazes os fatos e refazê-los, como eu os faria?

Composição Locatelli - ensaio #2

13 tiros.
Tempo que passa.
12 horas no relógio + 1 hora que é só minha.
Tempo que nunca basta.
12 balões coloridos murchando um a um (pelo menos em teoria).
Tempo que seca.
A violência de 13 tiros e a violência de ver o tempo passar e não conseguir aproveitá-lo.
Tempo que não volta.
Dream a Little Dream of Me - Sonhe comigo, sonhe com coisas boas, se convença de que a vida tá linda pra esquecer o caos lá fora.
Tempo que ilude.
Tempo que mata.
Tempo que morre.

Relato Selvagem - Ladrão de Pizza

"LADRÃO DE PIZZA"


               INT. SALA DE ESTAR - PRIMEIRAS HORAS DO DIA


               DONA ROSA, 64, olha pelas frestas da persiana, desesperada.
               DAVI, 68, está de braços cruzados, apreensivo, mas
               surpreendentemente calmo. Rói as unhas.

                                   DONA ROSA
                          (chorando)

                      Pelo amor de Deus, Davi! O que é que a

                      gente vai fazer?

                                   DAVI

                      Calma, Rosa! A gente não vai fazer

                      nada. Calma.

                                   DONA ROSA

                      Calma? Como calma? Tem um.

                                   DAVI

                      Não grita! Tu vai acordar a Amanda.


               Dona Rosa segura o choro tampando a boca, olhando para o
               interior da casa. Faz-se um longo silêncio.

                                   DONA ROSA

                      Eu não queria, Davi... eu não

                      queria... era só pra dar uma dura

                      nele! Ele falou que qualquer coisa era

                      só ligar, eu nunca imaginei...!


               Davi acolhe Rosa em um abraço.

                                   DAVI

                      Você fez certo, Rosa. Deixa que eles

                      se resolvam do jeito que eles acharem

                      melhor! A lei deles não é a mesma da

                      nossa.

                                   DONA ROSA

                      Uma pizza, Davi! Tudo isso por causa

                      de uma pizza!

                                   DAVI

                      Ladrão é ladrão. Ele quis se meter com

                      gente de bem e pagou o preço.

                                   DONA ROSA

                      Por quê, meu Deus? Ele devia saber que

                      não pode mexer com ninguém daqui da

                      vila, que o cara não quer encrenca na

                      porta de casa.


               Dona Rosa espia pela persiana mais uma vez.

                                   DONA ROSA (CONT'D)

                      Eu vou chamar a polícia.

                                   DAVI

                      E tu vai dizer o quê? Se descobrirem

                      que foi tu que ligou pro cara, o quê

                      cê acha que vai acontecer contigo?

                                   DONA ROSA

                      Daqui a pouco o povo do morro vai

                      começar a descer pra trabalhar, Davi!

                      As crianças! As crianças vão começar a

                      descer pra ir pro colégio! Elas não

                      podem.

                                   DAVI

                      Fodam-se, Rosa! Tu é síndica só até a

                      escadaria. Depois dela, é terra de

                      ninguém. Essa gente não é nosso

                      problema.

                      Tu acha que eles não tão acostumados?

                      Que eles não vêem isso todo dia lá em

                      cima?

                                   DONA ROSA

                      Crianças, Davi...

                                   DAVI

                      É tudo bicho. Vai ter pena de bicho?

                      Tudo marginal. Você passa a mão na

                      cabeça agora e daqui a uns anos ele

                      mete uma faca no teu lombo e te rouba.


               Silêncio. Rosa encara Davi e vai se acalmando, convencida por
               suas palavras.

                                   DONA ROSA

                      Tá certo. Cê tá certo. Mas o quê que a

                      gente faz então?

                                   DAVI

                      Daqui a pouco algum vizinho vai na

                      janela e vai ver isso. A polícia vai

                      limpar tudo e vai ficar por isso

                      mesmo. E a gente não se mete. Tu já

                      fez a sua parte.

                                   DONA ROSA
                          (Mais controlada)

                      Você vê o que acabou de acontecer

                      aqui, né?

                                   DAVI

                      Tu acabou de se tornar a mulher mais

                      poderosa da Rua dos Araújos.

                      Tu vai proteger todas essas famílias

                      dessa gente, Rosa.


               Ouvem passos de alguém descendo as escadas apressadamente,
               parando bruscamente com um suspiro de espanto. Rosa toma a
               mão de Davi, agitada. Os passos retomam, agora um pouco mais
               lentos em sua descida, seguindo seu caminho até sumirem.

                                   DAVI (CONT'D)

                      Não falei? Tão acostumados.


               Rosa espia pela persiana. Davi senta no sofá da sala. Após
               alguns momentos, o telefone toca. Silêncio. Davi vai atender,
               mas Rosa toma o telefone dele.

                                   DONA ROSA
                          (segura de si)

                      Alô?


               Silêncio na linha.

                                   O CARA

                      Recebeu meu pacote?

                                   DONA ROSA

                      Não abri não, mas recebi. Precisava

                      disso?

                                   O CARA

                      Ei, foi tu que me ligou pra mim

                      resolver a parada. Não gostou de como

                      eu trato neguinho que não me obedece,

                      esquece esse número. E tá reclamando

                      do quê? Bandido bom é bandido morto,

                      né não?

                                   DONA ROSA

                      Contanto que não seja você.

                                   O CARA

                      Contanto que não seja eu. Vai dormir,

                      daqui a pouco os homi tão tudo aí e

                      você não vai conseguir pregar o olho.


               O Cara desliga o telefone. Dona Rosa põe seu aparelho no
               gancho e pega Davi pela mão, conduzindo-o até o quarto. O
               ponto de vista permanece na sala, fechando na janela até
               atravessá-la, chegando na escadaria.



               EXT. ESCADARIA - MANHÃ


               O LADRÃO DE PIZZA, 20, está esparramado na escada com um tiro
               na cabeça, mãos e pés amarrados, completamente nu, exceto por
               um cartaz feito de papelão e barbante pendurado em seu
               pescoço, onde se lê: "LADRÃO de PÍTIZA"

                                                          FADE TO BLACK.

MINEIRINHO ---- Clarisse Lispector

É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo pro­curar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irre­dutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perple­xidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.
Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.
Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais — vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu - que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva.
Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta.
Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estre­meça.
A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.
Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho — essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição.
A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, espe­rando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem.
E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta tran­cada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.
Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que esta­mos todos certos e que nada há a fazer.
Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.
Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido com­preendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.
Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.
Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso - nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.
O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.


CLARISSE LISPECTOR --- 1978

sexta-feira, 24 de abril de 2015

ensaio #01

05 possibilidades. ou apenas 01 retângulo verde.
Passado. Futuro. Atualidade inquieta.

Menos prisão.
Menos medo.
Mais autoridade sobre si próprio.


Autorize-se!

Domingo. Mesma foto. Mesmo penteado. Pernas cruzadas sobre o móvel com lustra-móveis.
Sinto cheiro de vinícola. Isso é um convite.

Cinco atores.
Cinco corpos.
Cinco memórias.
Cinco desejantes.
Cinco formas.
Cinco carrinhos elétricos.
Cinco. Cinco. Cinco. Cinco. Cinco.Um.

Meu nome é Palmeira Arantes Rangel Cabral Locatel Rodrigues Makino Müller.

Eu me pergunto: De onde eu falo?

A violência é constante.
FALTA  E S P E R A N Ç A.
O Futuro é turvo. É um borrão.
Eu me vejo TEATRO.

Pra mim, as palavras não bastam.
Eu não consigo escutar tudo de uma palavra. 
Minha escuta é bloqueada.

Eu me vejo no passado olhando para o futuro sem sentir esperança.
Eu quero a transformação da sociedade de informação em sociedade de comunicação.
Eu quero acreditar na ação da arte como motor para modificação.
Eu quero reatar e entender a relação P A L C O  X  P L A T É I A

Parede e chão. 
De concreto. 
Luz forte. 
Sol de Belém do Pará.

É meu aniversário de sete anos. Estou usando [primeiro tiro] um vestido [segundo tiro] que eu odeio [terceiro e quarto tiros] e tenho nas mãos [quinto, sexto e sétimo tiros] um pacote de Cheetos [oitavo e nono tiros] quase do meu tamanho. [décimo tiro] Na porta de casa, uma poça de sangue. [decimo primeiro e decimo segundo tiros] Um homem quer pular o meu portão. A polícia está atrás dele. Eu quero ajudar. Eu? [decimo terceiro tiro] ajudar?


EU SOU 01 CORPO.

EU SOU UM RETÂNGULO VERDE EM MEIO AO CAOS.


ensaio #01 -------------------------
salão de festas – prédio mika
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andré locatelli, davi palmeira, dominique arantes,
grasiela müller, luiza rangel, mika makino, ricardo cabral, rubia rodrigues.


--- davi.