quarta-feira, 13 de maio de 2015

#26.04.2015- Diário de um tiro

#26.04.2015-  Diário de um tiro


(Domingo), 18:45, estaciona uma Van, sai uma moça, Ana, carregando um acordeon, ela acena para os de dentro do carro, sorri, despede-se. Entra na padaria, compra pão, queijo e manteiga. 
Caminha na rua em direção a sua casa. Cantarola canções, acena para a vendedora de açaí. 
      
(Sábado- dia anterior) 
       Cadu corre, grita para dentro do portão.
Sirenes os despertam 
 (tiro) (tiro) (tiro) ttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttttt
.............................................................................................................................
     
(Domingo)
Ana, entra no elevador, aperta 8° andar. 
Marina abre a porta. Ela a abraça, tira seu acordeon e senta no sofá. 

Ana abre seu e-mail. 
     Mensagem nova no grupo.  <mineirinho_@Clarice Lispector.com>
e um pedido,  [composição]. 
Ela pesquisa formas sonoras de revelar um tiro cênico.
Lembra dos estalos de papel que faziam na escola.
       Procura folhas, acha uma pasta de partituras -  puxa aleatoriamente- 
pega a da música Bife e pratica a cena.

(segunda)
09:45, atrasada, encontra o porteiro que comenta sobre o acontecido tiroteio.
Conturbada e ainda sonolenta, abre o portão, acena um bom dia para ele e sai.
        Segue com os olhos as manchas avermelhadas na calçada
Vizinhos comentam segurando seus cães e crianças passam para o portão da escola.
        Ana chega no ensaio, prepara o estalo

                         (Tiro) 


Cai
    Ana: Mais um,
                              Todos os dias.
          Um Grito extasiado adormece suas nervuras.
 Um  homem e um sopro metálico.
             Um, joga cápsulas e assina papeis de contratos,
 outro, fala seu nome:
 (Ana interpreta o menino da rua) Cadu (cai)    
Ana: Chamou o  tal destino. 
                                    Segue a fila--------------------- fila>>>>>>>>>>>
       
                         logo se faz, mais uma vez,
                                       A  roda,
               A roda de gente na rua.
               Teve foto, teve choro, teve bolo, teve curioso, teve TV, 
                                      E teve a mãe.  (silêncio)

             Ana: Teve o que merecia!! disse o cidadão do portão.  
                           

                          Agora a formiga desvia o corpo miúdo
                                          e faz força pra passar.
                                                    muita gente, muita gente
                                                             muito peso, muito peso, muito peso
                                                                          muito mundo, muito mundo.

(Ana bate a palma da mão no chão ==== mata a formiga.
Olha para a palma da mão)

O que eu sinto não serve para se dizer ............ (  mineirinho_@Clarice Lispector  
Mas foi preciso falar .
Por isso cometi aqui um crime particular.

Afinal somos seres sonsos essenciais


Foto tirada do dia por um morador da rua



segunda-feira, 11 de maio de 2015

Relato selvagem – Luiza




Tem certas coisas que um pai não deveria contar ao filho, simplesmente porque determinadas conversas acontecem sem palavra.  Escutar aquilo da boca do próprio pai seria estranho demais, seria um vômito ao contrário.  O rapaz já aparentava seus 27 anos, o pai 56. No entanto, descobriu-se que talvez eles não se parecessem em nada. Descobriu-se que, talvez, os seus olhos não fossem feitos da mesma íris, nem as lágrimas do mesmo gosto salgado, nem o sangue da mesma cor.  

Mas, o rapaz vivia a vida inteira a escutar dos parentes: "- seu gênio é igual do pai!" Então por que a sensação de não pertencer?  No fundo do coração a nenhuma, a vazia e a murcha vontade de dizer que sentia “saudade”, coexistindo com a terrível, a desesperadora, a tenebrosa dificuldade de pensar na ausência do pai, seja por motivo de morte ou de doença. E o choro agudo, então, quando descobriu que o pai estava a beirar a morte? Isso tudo coexistindo.

Estar dentro de uma família há 27 anos e passar a se indagar o tempo todo se aquele avô – pai do seu pai – pode ser simplesmente um amigo muito querido, ancião, que te emprestou o nome de "vô" - sem o ser, na falta de um. Todo mundo vira amigo. A memória das tias dando banho de mangueira no quintal, sim, podem provocar a pausa: "- na verdade. as amigas da minha mãe. É."


O pai também não tinha certeza e os dois apenas trocaram sensações pelo ar. A fala se interrompeu para dar lugar a uma decisão sem palavra: a de não saber, nunca mais, quem é que era amigo ou quem é que era sangue.

 Eis que tudo isso coexiste, já não importa falar. xii.

Composição 1 – Luiza

13 barulhos. Dorme com isso.
No 1º tiro, eu lembro, perguntei se alguém alí gostaria de aprender, porque eu senti vontade de ensinar algo. E enquanto ele aprendia a "virar eu", eu – que também eu sou ele – pensei em falar bem alto – só não me matam porque não quero morrer, só não me deixam matar porque ter matado será a escuridão em mim... Um homem que mata muito é porque teve muito medo.” Desisti. [mais 3 tiros lá fora]. E eu só falei : “ E-U SSSO-U O O-U-TRO. O HOMEM QUE MATA MUITO É PORQUE TEVE MUITO MEDO.”

No 5º tiro, ficamos esperando o próximo – com escuta aberta e atenta.
O 13º foi fatal. Olhos fechados, o povo carregava meu corpo. O velório foi cheio de palavras políticas. Era o teatro do oprimido. Era o acaso-abismo existente entre o ponto A e o ponto B, chamado B rasil.


segunda-feira, 4 de maio de 2015

ensaio #03




--- escrita em jogo


   Uma mulher dorme. No meio da noite uma sirene toca. Ela, que acreditava que sua missão era tomar conta do mundo, constatou que mal podia cuidar de suas próprias pernas e de seu futuro Manuel. Cambaleante, levanta-se da cama e segue para o banheiro, onde se encara no espelho. Chora, com um rosto neutro. Um homem esquálido e um estrondoso ruído invadem o espaço. A jovem corre em direção ao sótão contendo suas lágrimas. Ao chegar, pega um tecido escuro e aperta sua barriga. Outra sirene toca e ela tenta proteger Manuel apertando com ainda mais força o pedaço de pano sobre o corpo. Entre sirenes e passos na madeira velha, sons do quotidiano daquela cidadela áspera, o único ruído que passava por sua cabeça era de sua própria respiração.

    Corre em direção ao corredor, vai até a varanda , encosta seu dedo no metal frio do gatilho. Não podia aguentar mais nenhum minuto aquela sufocante sensação de não saber mais quem era. No instante seguinte, seus olhos encontram os do homem. Ela volta atrás.

    “Lana, me ajuda... me leva para o solo 3 e fica comigo lá. Eles vão chegar logo”, disse Miguel segurando-se enfraquecido na mulher. Num rompante, ela arremessa o corpo de Miguel contra o parapeito da varanda e a noite é entrecortada por outra sirene. Ela levanta a arma e aponta para o corpo desesperado de Miguel.  Aperta o gatilho; aperta o gatilho e, mais uma última vez, aperta o gatilho. Três sons secos para a possível esperança de uma solução. Três tiros para o ar. Por falta de coragem, pediu ajuda.  Quem sabe uma sirene não parava em sua porta? Gritando do parapeito, os olhos vermelhos e a garganta em chamas, Lana viu no contraste do frio da noite e do calor da arma um vislumbre de esperança. Sentia-se útil pela primeira vez em muito tempo.

Continua...

por andré locatelli, davi palmeira, grasiela müller,
mika makino, ricardo cabral, rubia rodrigues.


ensaio #03 -------------------------
sala do elevador - CBAE ou CEU
----------------------- 04/05/2015



domingo, 3 de maio de 2015

relato selvagem

É domingo de sol na Escadaria Selarón, na Lapa. O lugar, todo em cores, com os azulejos refletindo o brilho do sol, está apinhado de gente falando em todos os idiomas. Turistas, ambulantes, hippies, escritores de nomes em grãos de arroz. Sobretudo, fotos. Muitas fotos. O lugar mais desejado, bem no alto, é perto dos azulejos brancos sobre os vermelhos. Dizem "SELARÓN". É preciso subir uns tantos degraus gigantes formado por banheiras acimentadas para chegar lá. Chega a haver uma fila de uma meia dúzia de turistas. Cada grupo sobe enquanto alguém, de baixo, tira a foto. Observo o ritual umas três vezes. Em uma das vezes, são crianças. É impressionante que todas as fotos tenham o mesmo enquadramento. É impressionante que todos tenham a mesma dificuldade em subir especialmente um dos degraus-banheiras. É que num deles, há um homem dormindo, todo coberto em trapos, como se quisesse proteger seu sono imundo da luz do sol. Os turistas se encolhem para conseguir driblar o corpo inerte e chegar ao degrau do alto. Lá, eles precisam sorrir. Os enquadramentos esquisitos, por sua vez, precisam não-mostrar o corpo. Do contrário, seria estranho demais sorrir.

composição ensaio #02

um tiro. ele entra correndo. os corpos, o vivo e o morto, pingam. é preciso ser rápido. é preciso cuidado. é preciso ser certeiro. o tiro já deu conta daquilo que é físico, daquilo que é biológico. mas é a faca que dá conta da minha humanidade. e uma e outra vez. feito doido. e mais uma e de novo e de novo e de novo. com toda a força. oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras. um cabo. é difícil amarrar, é preciso que esteja seguro. ele vai para o alto. o tempo passa e tudo torna-se cada vez mais inseguro. pendura o corpo e outra vez é difícil amarrar. no baixo de novo se dá um momento para contemplar sua obra. pinga. pingam.